sábado, 23 de janeiro de 2016

A Realidade Condicionada
Por
Ajaan Brahmavamso
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Os temas que com freqüência surgem no Budismo são o condicionado e o incondicionado, especialmente se alguém está em busca da verdade, em busca da realidade, em busca da liberdade. Pessoas que tenham estudado os princípios de psicologia, ou que tenham algum conhecimento da natureza das coisas, sabem o quanto somos condicionados por kamma, pelas nossas experiências e por tantas coisas diferentes. Essas condições na verdade afetam o modo como vemos o mundo e como experimentamos a realidade. Elas também afetam as nossas escolhas e o modo como usamos a nossa vida. Quando olhamos bem no fundo, podemos ver que as nossas escolhas condicionam as nossas vidas, mas as nossas escolhas não são livres. Há muitas influências que fazem com que façamos as coisas que fazemos. A maneira que vemos as coisas não é "como elas na verdade são". Muitas pessoas já observaram que vemos, ouvimos e experimentamos aquilo que queremos experimentar e que queremos ver. Essa é a razão porque a nossa realidade difere da realidade da pessoa que está sentada ao nosso lado.
O Ciclo da Delusão
Nós criamos e fazemos a nossa própria realidade, o nosso próprio mundo. Vivemos nesse mundo. Condicionamos esse mundo. Falei brevemente antes sobre a idéia Budista de Deus, especialmente sobre a criação e se os Budistas acreditam no "Big Bang", ou no começo das coisas. A pessoa que me fez essa pergunta mencionou corretamente que uma das coisas que podemos saber é que existe um criador dentro de nós. Nós criamos o nosso mundo. O modo pelo qual condicionamos o nosso mundo depende em grande parte de influências externas. As pessoas querem ser livres e falamos muito no ocidente sobre a liberdade, mas se olharmos mais fundo, veremos que aquilo que tomamos como liberdade está preso pelos grilhões do condicionamento. No Budismo, o objetivo é ver esse condicionamento, reconhecê-lo e destruir esses grilhões.
Temos, no Budismo, um ensinamento chamado os dez grilhões. Grilhão é uma boa tradução da palavra, em pali, samyojana. Empregando as idéias da sociedade agrária na Índia 2.500 atrás,yojana significa o colar de madeira usado para unir um par de bois para tração. Assim é como se uniam os bois para puxar uma carroça. Isso é um grilhão, uma atadura. A idéia no Budismo é reconhecer que estamos atados e depois desatar essa atadura para alcançar um tipo de liberdade que não é reconhecida neste mundo, a liberdade de uma pessoa iluminada.
As pessoas, algumas vezes, pensam que os monges estão unicamente apegados a regras: apegados ao celibato, apegados ao fato de terem poucas coisas e apegados à idéia de serem felizes. Elas não se dão conta de que se trata da liberdade dos grilhões e da liberdade do condicionamento. As pessoas não se dão conta do que na verdade são esses condicionamentos. Temos as nossas manchas cegas, aquilo que definitivamente não enxergamos, mas no entanto pensamos que somos livres-pensadores. Pensamos que somos racionais e científicos. Tendo trabalhado com a ciência como físico teórico na Universidade de Cambridge, eu percebi que mesmo ali muitos cientistas não são livres-pensadores. Eles são condicionados. Muito daquilo que eles fazem está completamente carregado do sistema de valores que eles trazem consigo, e com freqüência eles encontram aquilo que estão querendo encontrar ao invés daquilo que ali está.
Li um artigo num jornal, acerca de um debate, sobre o fato da ciência ou o "método científico" estar ou não livre de valores, em outras palavras, se é subjetivo. O debate dizia respeito à engenharia genética nos alimentos. Os cientistas diziam serem racionais, que não há nada de errado com a engenharia genética. Outras pessoas diziam que há muitas coisas erradas nisso. Quem está certo e quem está errado? Os cientistas diziam que as outras pessoas eram completamente irracionais e só enxergavam o assunto através do seu sistema de valores. Como os cientistas não possuem um sistema de valores, eles vêm as coisas como elas realmente são! A discussão estava encerrada para muitos cientistas e filósofos. Mas quem diz que a ciência está livre de valores? Existem tantos condicionamentos na ciência que fazem com que somente aquilo que quer ser visto seja visto. Tanto assim que existe um velho ditado na ciência:
‘A eminência de um grande cientista é medida 
pelo tempo que ele impede o progresso no seu campo de ação.'
Quanto mais famoso o cientista e mais proeminente ele for, tanto mais as suas idéias serão tomadas como verdades sagradas. Isso significa que um grande cientista é tão eminente que ele ou ela não podem estar errados. Assim eles na verdade obstruem o progresso durante muitos anos porque eles devem estar certos e todos os demais enxergam sob essa perspectiva.
O Buda delineou de modo muito claro todo o processo condicional. Ele explicou que nós vemos o mundo através de lentes coloridas. Ele explicou que aquilo que tomamos como verdade, como real, está muito distante da realidade. Ele chamou esse processo de condicionamento e lavagem cerebral, que provêm principalmente do nosso interior, de vipallasas. Elas são o aspecto distorcido de todo o processo condicional. Elas são a razão porque aquilo que pensamos saber acaba se revelando incorreto. Alguma vez você tinha absoluta certeza de que estava certo e depois descobriu que estava errado? Isso acontece o tempo todo. As vipallasas, essas distorções do processo condicional, operam num ciclo, um ciclo de delusão. As nossas idéias - que compreendemos como verdades, como realidade - influenciam as nossas percepções. Basicamente, as nossas idéias influenciam aquilo que escolhemos ver, ouvir e experimentar. De todas as distintas impressões que a vida nos oferece há muitas coisas das quais você poderia ter consciência neste momento. Você poderia estar consciente daquilo que estou dizendo. Você poderia estar consciente somente da minha aparência. Você poderia estar consciente de algumas fantasias dando voltas na sua mente. Como você decide ter consciência de uma coisa ao invés de outra? É porque as suas idéias guiam a sua escolha.
Se você sentir raiva de alguém, ou tiver má vontade, você irá encontrar algo neles para justificar aquela má vontade. A pessoa diz, "Tenha um dia maravilhoso hoje", e você pensa "O que diabos ela quer dizer com isso?" É o mesmo processo que a paranóia. Se alguém estiver realmente paranóico, ele poderá pensar que um monge é capaz de ler a mente. O monge diz, "Não, eu não sou," e ele diz "Eu sabia que você ia dizer isso." Um psiquiatra me disse, faz alguns dias, que você pode apenas aumentar a paranóia, não é possível diminuí-la. Qualquer coisa que se diga, aquela pessoa irá tomar como confirmação da sua idéia. Se você estiver apaixonado por alguém não importa o que ele ou ela faça ou diga. Se ele ou ela enfiarem o dedo no nariz, assim o fazem com tamanho charme. Você pensa, "Eu amo o modo como você faz isso."
A percepção é completamente controlada pelas nossas idéias. Vou ler uma história apenas para ilustrar isso. A história é chamada de "A Perda de Harvard". O presidente da universidade de Harvard cometeu um erro ao prejulgar pessoas e isso lhe custou muito. Uma senhora num vestido de algodão puído, junto com o seu marido vestindo um terno caseiro surrado, chegaram num trem em Boston, Massachusetts, e com timidez foram para o escritório do presidente da universidade sem ter entrevista marcada. A secretária franziu a testa. Num instante ela foi capaz de estabelecer que aqueles caipiras não tinham nada a tratar na universidade de Harvard e provavelmente nem mereciam estar em Cambridge. "Nós queremos ver o presidente" o homem disse com suavidade. "Ele estará ocupado o dia todo" a resposta brusca da secretária. "Nós esperaremos", a senhora respondeu.
A secretária os ignorou por horas na esperança de que o casal finalmente desanimasse e fosse embora, mas eles não foram. A secretária começou a se sentir frustrada e finalmente decidiu perturbar o presidente, muito embora essa fosse uma tarefa que ela sempre lamentava ter de fazer. "Talvez se eles o virem por alguns minutos decidam ir embora", ela disse para o presidente da universidade de Harvard. Exasperado ele suspirou e concordou com a cabeça. Alguém tão importante como ele é óbvio que não teria tempo para gastar com essa gente, mas ele odiava que vestidos de algodão barato e ternos caseiros poluíssem a recepção do seu escritório. O presidente, com austera dignidade expressa no rosto, pavoneou em direção ao casal. A senhora lhe disse, "Nós tivemos um filho que estudou na Harvard durante um ano. Ele amava a Harvard e se sentia muito feliz aqui, mas faz um ano ele morreu num acidente. Então, meu marido e eu gostaríamos de erigir para ele um memorial em algum lugar no campus." O presidente não foi sensibilizado, ele estava chocado. "Madame", disse ele com irritação, "não podemos colocar uma estátua para cada pessoa que estudou na Harvard e que tenha morrido, se fizéssemos isso o lugar pareceria um cemitério." "Ah, não", a senhora rapidamente explicou. "Não queremos erigir uma estátua. Pensamos em doar um prédio para a Harvard." O presidente mexeu os olhos enfadado. Ele olhou para o vestido de algodão e o terno caseiro e exclamou, "Um prédio! Vocês têm alguma idéia de quanto custa um prédio? (Isso aconteceu faz muitos anos). Nós temos mais de sete milhões e meio de dólares em investimentos na Harvard." Por um momento a senhora ficou em silêncio. O presidente ficou satisfeito, ele poderia se livrar deles agora. A senhora se voltou para o marido e disse calmamente, "Se esse é o custo para começar uma universidade, porque não começamos a nossa," e o marido concordou com a cabeça. O rosto do presidente murchou com confusão e surpresa. O Sr. e Sra. Leyland Stanford foram embora, viajaram até Palo Alto na Califórnia, onde estabeleceram uma universidade conhecida como Stanford University que leva o nome deles. Foi um memorial para um filho em relação ao qual a Harvard já não mais se importava.
Não é uma bela história? Só porque aquelas duas pessoas estavam vestidas com roupas simples ninguém percebeu que elas eram milionárias e desse modo elas deram início à sua própria universidade. Não é isso que ocorre com tanta freqüência na vida?
Aquilo que estamos procurando é o que vemos. Essa é a razão porque o Buda ensinou que até mesmo a percepção neutra, já está condicionada. Mesmo aquilo que ouvimos - ou melhor aquilo que escolhemos ouvir - aquilo que escolhemos ver, escolhemos sentir, já foi filtrado pelo nosso condicionamento, pelos nossos apegos, pelos nossos desejos e cobiças. Essa é a razão porque mesmo o ensinamento de Krishnamurti, um tipo de atenção silenciosa, ou não-agir, não seria suficiente para descobrir a verdade genuína. Aquilo que vemos e ouvimos nunca é confiável. Essa é a razão porque algumas vezes quando dou palestras, digo uma mensagem, mas aquilo que vocês ouvem pode ser diferente. Alguma coisa acontece com as palavras que digo antes que elas cheguem na consciência de vocês. Algumas coisas são filtradas! Isso já aconteceu alguma vez com vocês? Vocês alguma vez já disseram uma coisa e foi completamente desentendida? Vocês dizem, "Eu não disse isso", e a outra pessoa diz, "Sim, você disse”. Você disse muitas coisas, mas elas foram filtradas ou retiradas do contexto original. Assim é como surgem os mal-entendidos. Quando começamos a entender o modo como esse processo cognitivo funciona, podemos entender como condicionamos até mesmo as nossas percepções genuínas.
Com essas percepções fabricamos os nossos pensamentos. Esse conhecimento básico que chega na mente quando sentimos, quando vemos, constrói os nossos pensamentos. E esses pensamentos por seu lado confirmam as nossas idéias. Temos esse ciclo de idéias flexionando as nossas percepções para satisfazer os seus propósitos, e essas percepções, novamente flexionando os pensamentos para confirmar as idéias. Essa é a razão porque temos diferentes idéias, filosofias e religiões no mundo. Uma dessas religiões é a ciência. Outra pode ser a psicologia, e outras podem ser o humanismo, o irracionalismo, o agnosticismo ou mesmo o Budismo. Todas essas são diferentes idéias e opiniões presentes no mundo. Aquilo que realmente me interessava quando eu era jovem era a origem dessas idéias e opiniões. Porque pessoas racionais acreditam num Deus que criou este mundo e que ao mesmo tempo criou o Diabo apenas para importunar as pessoas? Isso era muito difícil de entender. Outros pontos de vista, por exemplo, a idéia de condicionamento moldado pelas nossas idéias, pensamentos e percepções, esclarecia como isso estava acontecendo. Aquilo que recebemos do mundo está basicamente condicionado por aquilo que esperamos receber.
Negação (ou Não Aceitação)
Agora vou ler um poema. Ouçam este poema. É sobre o amor por uma mãe e todos sabem que isso é um sentimento maravilhoso.
‘Quando a sua mãe estiver envelhecendo e você estiver envelhecendo, 
quando aquilo que antes era fácil e não requeria esforço se tornar um fardo, 
quando os olhos, amados e leais, não mais encararem a vida como antes, 
quando as pernas se tornarem cansadas e não mais quiserem carregá-la, 
então ofereça o seu braço como apoio, acompanhe-a com alegria e felicidade, 
porque chegará a hora, em lágrimas, em que você a acompanhará na sua última jornada;
E se ela lhe perguntar algo responda sempre, e se ela novamente perguntar fale assim mesmo, 
e se ela mais uma vez perguntar, não responda num tom brusco mas com gentileza, em paz, 
e se ela não compreendê-lo bem, explique tudo com bom humor, 
porque chegará a hora, amarga hora, em que a boca da sua mãe não mais perguntará.’
Esse é um poema que foi traduzido do alemão, escrito em 1923 por um alemão muito conhecido chamado Adolf Hitler. Você sabia que Adolf Hitler era um poeta e que ele amava muito a sua mãe e que pensava muito no amor que ele sentia por ela? Não! Pois bem, não será porque as nossas idéias são que um homem como esse foi tão ruim e perverso que nunca poderíamos contemplar a idéia de que ele tivesse um lado emocional tão suave?
Quantos de vocês podem imaginar os seus ex-maridos ou ex-esposas como um "Adolf Hitler"? Vocês percebem o que estou dizendo? O processo de condicionamento significa que se pensamos que alguém é um inimigo, então pensamos que eles não prestam. Pensamos que eles são ruins e isso é tudo que vemos. Podemos pensar, "eu não presto", "eu sou ruim", "eu sou horrível", e isso é tudo que vemos. O processo de condicionamento é tão forte que as pessoas algumas vezes ficam tão deprimidas que são capazes de se suicidarem. Ou elas ficam tão convencidas que se tornam egocêntricas e não ouvem ninguém. Tudo isso é apenas o condicionamento operando de três formas. Não pense que você está livre disso. Mesmo agora você não está ouvindo aquilo que estou dizendo mas aquilo que você quer ouvir, aquilo que você espera ouvir. Essa é a dificuldade para os seres humanos, ser capaz de saber a verdade das coisas.
Outro exemplo é o renascimento ou reencarnação. É um assunto fascinante: não se é falso ou verdadeiro, mas porque as pessoas acreditam que seja falso ou verdadeiro. Isso é algo que me fascinou durante anos. Porque é que quando alguém possui alguma recordação de um renascimento e elas se lembram daquilo com clareza, as outras pessoas com freqüência dizem, "Não, não pode ser isso, tem de haver alguma outra explicação"? Ou, porque é que quando algo lhe acontece, você acredita que aquilo se deve a algum acontecimento numa vida passada? Porque as opiniões em cada lado são tão fortes? Eu tenho um interesse especial na razão porque as pessoas se recusam a acreditar no renascimento. Como um cientista ou uma pessoa racional, no mínimo as pessoas deveriam ter a mente aberta. Para mim era algo bastante óbvio, algo com o que eu convivi desde criança. Meus pais não eram Budistas mas o renascimento sempre me pareceu algo tão óbvio. Não sei como adquiri essa idéia, mas ela estava presente. Descobri que nos países do Ocidente, como a Austrália, ou quando vou visitar meus familiares na Inglaterra, existe uma grande resistência contra a idéia do renascimento. Não é que as pessoas tenham mentes abertas; na verdade elas têm as mentes bem fechadas, uma porta trancada contra essa idéia. Quando olhei em profundidade, vi com clareza que as pessoas sentem um forte antagonismo contra a idéia do renascimento. A principal razão pela qual as pessoas temem o renascimento é porque elas não querem renascer. Elas querem apenas viver esta vida e fim. Essa é uma das razões porque as pessoas se recusam até mesmo a considerar evidências claras de que elas tiveram uma outra vida antes e de que irão viver novamente.
Quer seja Budismo, Cristianismo ou Hinduísmo, ou qualquer outra, o renascimento conduz a uma nova vida. Não importa a religião ou a sua crença, a próxima vida sempre depende do que você tenha feito nesta vida. Basicamente, a maioria das pessoas se comporta tão mal que elas têm medo do que lhes possa acontecer na próxima vida. Elas preferem acreditar que não haverá uma nova vida. Elas se recusam a reconhecer uma verdade desagradável! De onde vem essa negação? Novamente, é o condicionamento e a lavagem cerebral, "Eu não quero acreditar que isso seja verdade. Eu não quero ver isso e portanto não vejo."
Outro exemplo vem de uma aluna. Muitos anos atrás, ela estava com um grande problema porque o seu marido estava abusando sexualmente dos filhos. Ele foi para a cadeia. Durante muitos meses ela não foi capaz de ver o que estava acontecendo. Ela era uma mãe carinhosa e esposa dedicada. Como acontece algumas vezes nesses casos terríveis, tudo foi descoberto na escola. Os professores perceberam alguns indícios e ao investigarem descobriram que a situação tinha sido avaliada corretamente e que as crianças estavam sendo vítimas de abuso sexual. A mãe se sentiu muito culpada, mas como pode ter acontecido dela não ter sido capaz de enxergar os indícios? Como monge Budista - que conhece a mente, conhece o condicionamento, conhece a psicologia disso tudo - eu tive que lhe explicar a razão porque ela não conseguia ver aquilo que os outros viam. A situação era tão horrível que no subconsciente ela não queria ver aquilo. Se você não quiser ver algo, simplesmente não será capaz de ver. Não é uma questão de supressão, que é feita às claras. O bloqueio ocorre no nível subconsciente. Ocorre antes que o processo entre na consciência. Já foi filtrado antes disso.
Há um experimento muito interessante que foi feito faz alguns anos na universidade de Harvard. Os psicólogos projetaram imagens instantâneas numa tela e pediram aos estudantes voluntários que escrevessem o que eles pensavam que as imagens representavam. A projeção foi tão rápida que no início eles não eram capazes de perceber do que se tratava. Pouco a pouco o tempo de exposição foi aumentado até que eles pudessem registrar alguma idéia do que se tratava. Então o tempo de exposição foi aumentado ainda mais de modo que os estudantes pudessem registrar se a imagem era aquilo que eles pensavam, até que o tempo de exposição foi longo o suficiente para que eles pudessem dizer com certeza do que se tratava.
O resultado pode ser ilustrado com um exemplo. A imagem projetada era de um lugar bastante conhecido no campus, um lance de escadas que levava a um dos prédios administrativos. Havia uma bicicleta ao lado dos degraus. Um estudante viu aquilo como um navio no oceano, mas como a imagem foi projetada por tão pouco tempo, foi apenas um palpite. No entanto, uma vez que aquela idéia entrou na sua mente, quando o tempo de exposição foi sendo aumentado gradualmente, ele ainda assim, a cada vez, viu um navio no oceano. Ele viu um navio mesmo quando todos os demais foram capazes de enxergar que se tratava daquele lugar no campus. Ele insistiu que era um navio no oceano até que o tempo de exposição foi tão longo que ele por fim acabou vendo e corrigindo o seu erro. A lição foi que uma vez que uma idéia tenha sido formada, ela interfere tanto com as nossas percepções que mesmo estando a imagem na frente do nariz, não somos capazes de vê-la. Vemos de um modo diferente daquilo que na verdade é.
Uma das imagens no experimento custou muito trabalho para que os estudantes identificassem; era uma fotografia de dois cães copulando. Era uma imagem tão obscena ou desagradável de ser vista que os estudantes simplesmente negaram a sua existência, uma vez, outra vez, outra vez, até que por fim estava tão óbvio que tiveram de enxergar o que era na verdade. Essa é uma sólida evidência daquilo que o Buda chamava de distorções do nosso processo cognitivo. Muito embora pensemos que sabemos aquilo que o nosso parceiro está dizendo, muito embora pensemos que sabemos quem ele/ela é, com muita freqüência estamos errados. Isso ocorre não somente no relacionamento com os outros, mas também no relacionamento conosco mesmo.
Vendo a Verdade e a Realidade
Particularmente, quero mencionar a relação com a verdade. Será o Budismo apenas mais uma crença condicionada como todo o resto, sem qualquer maior legitimidade do que a ciência ou qualquer outra religião? Não existe uma verdade? Será tudo relativo de acordo com o nosso condicionamento? Em outras palavras, como podemos romper esse modo condicionado de ver e perceber? Lembremos que o motivo porque flexionamos as nossas percepções, pensamentos e idéias é devido ao desejo. Nós vemos e ouvimos aquilo que desejamos ver e ouvir, e negamos aquilo que não desejamos ver, ouvir ou sentir. É o desejo que é o problema. É o desejo que condiciona o nosso afastamento da verdade.
O Buda se tornou um Iluminado abrindo mão de todo desejo. Ao invés de desejar ver o universo de um modo particular, ou desejar ver a si mesmo de algum modo particular, ele superou todo esse desejo ou cobiça. Isso não é algo fácil de ser feito. É chamado de "abrir mão", aquietar. O sinal do desejo é o movimento. O sinal do apego é não ser capaz de abrir mão. O sinal do ego é o controle. É por isso que encontramos tudo isso na meditação: desejos, apegos e controle, repetidamente. Essas coisas nos impedem de ver a verdade e a realidade. Temos que abrir mão por completo de todo desejo e cobiça, temporariamente, na nossa meditação.
A maioria de vocês meditou por apenas meia hora. No final da meditação eu lhes disse para verem como se sentem, para analisarem aquilo que funciona e o que não funciona na meditação. Esse é um exercício de superação do condicionamento. É verdadeiramente uma limpeza da mente de todos os seus condicionamentos, todos os seus desejos, todos os anseios de ver as coisas de um modo ou de outro. É abrir mão de tudo isso, abrir mão de todas as idéias, porque estas são os tijolos e a argamassa do condicionamento. Vocês já perceberam que quando nos deparamos com alguma coisa, nós a interpretamos com os pensamentos? De onde vêm todos esses pensamentos? Porque vemos aquilo deste modo e não de um outro modo? A razão é o nosso condicionamento.
Alguns dias atrás alguém deu para os monges um refresco no que parecia ser uma garrafa de vinho. Parecia vinho, mas não era vinho; não continha álcool; era apenas um refresco. Esse incidente fez com que os monges conversassem sobre álcool e ingestão de bebidas alcoólicas. Os outros monges contaram sobre experiências que eu também tive na minha juventude, quando pela primeira vez fui a um bar na Inglaterra para tomar o meu primeiro copo de cerveja. Minha primeira reação foi, "Esse negócio é horrível; como pode alguém bebê-lo? Porque as pessoas gastam tanto dinheiro bebendo esse tipo de coisa?" Essa primeira percepção provavelmente foi verdadeira; a cerveja amarga era nojenta. Mas, passado algum tempo, eu comecei a gostar. Eu fiquei me perguntando o que teria acontecido. Porque foi que quando provei a cerveja pela primeira vez foi horrível e depois quando eu tinha dezoito ou dezenove anos, eu estava bebendo muito daquilo? Eu vi que o motivo foi porque beber cerveja era aceito socialmente e todos diziam que era delicioso. Eu recondicionei os meus sentidos para gostar daquilo. Como a sociedade dizia que era delicioso, aquilo se tornou delicioso. Eu gostava porque queria gostar. Isso é tudo.
Também vi isso com a arte moderna. O que há de belo na arte moderna? Alguém me contou que houve um artista na França que convenceu uma galeria de arte a montar uma exposição sua. Eram apenas molduras vazias numa parede vazia. Aquilo foi uma afirmação; ele vendeu os quadros por milhares de dólares. Você alguma vez já viu isso acontecer no mundo? O que foi isso que acabamos de ouvir? Foi um belíssimo som ou o ruído incomodativo de um telefone celular? Não é o nosso condicionamento que faz com que vejamos de um modo particular? Se sabemos que a mente é condicionada, porque não condicioná-la de um modo sábio que gere felicidade? Se for um telefone celular você terá duas opções. Você poderá dizer, "Esse é um som muito agradável, muito musical, não como os telefones antigos, 'ring, ring, ring, ring'. Pelo menos nestes dias temos um pouco mais de charme." Ou você poderá dizer, "Não se deveriam permitir telefones celulares aqui. Quem fez isso? Vou falar com eles mais tarde. Deveríamos expulsá-los da Sociedade Budista. Não vamos mais permitir a entrada deles aqui." Então, qual resposta você prefere? Vocês podem ver como nos condicionamos?
Uma vez que saibamos como o condicionamento funciona podemos nos condicionar com a compaixão e a felicidade. Uma das primeiras coisas que podemos fazer é dizer, "Bem, eu tenho escolha. Posso desenvolver o condicionamento positivo ou o condicionamento negativo. Posso olhar para uma pessoa e ver as suas qualidades positivas ou posso olhar para a mesma pessoa e ver as suas qualidades negativas. Ambas estão ali." Desde que me tornei monge, eu me condicionei ao longo dos muitos anos a ver nas pessoas as suas boas qualidades, tanto assim que sou advertido pelas pessoas para ser um pouco mais crítico. Mas agora não posso fazer isso. O condicionamento é demasiado forte. As pessoas no monastério, ou os monges com os quais convivo, algumas vezes fazem coisas erradas. Outro dia, enquanto eu estava fora, houve uma discussão com algum rancor sobre uma decisão a respeito dos livros no nosso monastério. Conversei com uma das pessoas - que estava se sentindo muito ofendida - e disse, "Veja bem, eu não posso me sentir ofendido por nenhum dos monges neste monastério. Eles são pessoas tão amáveis e boas. Nós sabemos que nem todos são iluminados e que todos nós também temos qualidades ruins." Eu estava sendo absolutamente honesto. Eu não consigo ficar irritado com nenhum dos monges no monastério, não importa o que eles façam, porque eu vejo neles muitas coisas boas. Mesmo as pessoas que vêm ao Centro Budista, não importa o que vocês façam, vocês possuem tantas boas qualidades. Assim é como o meu condicionamento funciona agora. Quando você percebe as qualidades boas numa pessoa é impossível ficar irritado ou aborrecido com ela. Vocês todos são meus amigos e se eu os vejo dessa forma é muito difícil enxergar outra coisa. Se você tentar fazer alguma coisa para me ferir, eu diria, "Não, não, eu me lembro de todas as coisas boas que você fez."
Porque é que quando alguém diz alguma coisa para irritá-lo, só isso é lembrado? Nunca nos lembramos de todas as gentilezas que nos foram feitas, todas as palavras gentis que nos foram ditas. Eu sou o oposto. Esqueço todas as coisas desagradáveis que as pessoas disseram a meu respeito e só me lembro das coisas boas. Qual dos dois é mais verdadeiro? Ambos são igualmente errados. Mas eu escolho aquele que é errado, porém feliz. É interessante que esse tipo de condicionamento - ver o lado positivo, ver a felicidade, o positivo em você mesmo, a felicidade na vida, a felicidade nas outras pessoas - também é o caminho que conduz ao descondicionamento e ao incondicionado, a ver as coisas com clareza.
Quando você cultiva a felicidade na sua vida - livrando-se da negatividade e da má vontade em relação a si mesmo e aos outros - isso proporciona espaço suficiente para estar em paz. Estar em paz significa abrir mão dos desejos. Uma vez que você se sinta satisfeito no momento presente, então existe a oportunidade para abrir mão do desejo e estar em paz. Esse é o caminho ensinado pelo Buda. Tendo uma atitude positiva em relação à vida, cultivando a felicidade na mente, a mente se torna pacífica e tranqüila. Com essa tranqüilidade, quando os desejos e cobiças são subjugados temporariamente, você começa a ter clareza mental – a não ver as coisas como você quer vê-las, mas como elas na verdade são. Você só será capaz de fazer isso a partir de um estado de tranqüilidade e felicidade.
É parecido com um truque para fazer com que você se sinta muito feliz e em paz. Lendo os suttas eu percebi que assim é como o Buda ensinava. Ele despertava o interesse nas pessoas falando sobre coisas do dia a dia e depois, quando ele percebia que a audiência estava realmente ouvindo e que estavam se sentindo felizes, então ele comunicava o ensinamento. Ou como disse um monge Tibetano, quando todos estavam rindo com as bocas abertas, então ele colocava o remédio. O remédio é a quietude e a paz, porque descobrimos que aqui não há ninguém, anatta, não-eu. Descobrimos que aquilo que considerávamos livre escolha é completamente condicionado. Você pensa que está controlando tudo. Você pensa que escolheu vir aqui. Você pensa que decidiu tossir ou mover o seu braço deste modo ou daquele modo. Eu analisei as minhas escolhas, a minha vontade, durante muitos anos, estudando aquilo que era condicionado e o que tinha origem no meu eu, e descobri que tudo era condicionado. É por isso que repito sempre as mesmas piadas, não posso fazer nada. Não sou eu, é o condicionamento.
Onde a Vontade Cessa
Já faz muitos anos que venho dando palestras em Perth. Alguns anos atrás, sucedeu algo comigo; eu tive uma experiência que me deixou profundamente chocado. Foi uma dessas experiências fortes. Isso aconteceu antes deste Salão do Dhamma ter sido construído. Costumávamos dar as palestras do Dhamma no centro comunitário vizinho e a nossa biblioteca estava no que é hoje a recepção. Um sábado pela manhã, eu estava dando uma olhada nas fitas de áudio e vi uma fita K7 de uma palestra que havia sido dada fazia sete anos. Era o mesmo tema da palestra dada na noite anterior. O que havia sido dito na noite anterior ainda estava fresco na minha memória e pensei em comparar as duas palestras para ver o quanto tinha mudado em sete anos. Queria ver se a palestra dada na noite anterior tinha diferenças marcantes daquela dada há sete anos. Quando ouvi aquela fita, senti calafrios na espinha. Percebi que eu estava repetindo parágrafos inteiros quase que palavra por palavra depois de sete anos de intervalo entre as duas palestras. Na noite anterior eu realmente pensei que estava escolhendo cada palavra com completa liberdade de escolha e que a minha interpretação e percepção eram novas, mas a coincidência foi demasiada. Se eu realmente tive livre escolha porque o resultado foi o mesmo, parágrafo por parágrafo? Isso me mostrou que aquilo que eu pensava ser livre, não era livre de jeito nenhum, mas completamente condicionado.
Isso realmente me afetou porque abalou o meu sentido de eu, meu sentido de vontade, meu sentido de direção no mundo. Quem na verdade estava mexendo os pauzinhos? Quem decidia e fazia as escolhas? Isso me assustou muito, mas também me deu uma intuição que fui capaz de seguir e que me conduziu a uma meditação profunda. Quando não resta ninguém, quando não há mais volição, quando as escolhas cessam e têm fim, aí é que podemos na verdade entender algo sobre o incondicionado.
Muitas pessoas têm dificuldades em aceitar a idéia do não-eu porque o nosso condicionamento não nos permite ver isso. As pessoas têm muita dificuldade com o ensinamento do Buda sobre o sofrimento, dukkha. Porque? Porque elas não querem admitir que a vida é sofrimento. A idéia de monges celibatários é muito difícil. Nós ainda queremos ter os nossos relacionamentos sexuais. Os artigos nas revistas, escritos por pessoas que estão tentando ter sexo e realizar a iluminação ao mesmo tempo, parecem não ter fim. Isso é o que as pessoas querem. Como diz o velho ditado, "elas querem comer o bolo e guardar o bolo ao mesmo tempo." Não é possível guardar o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. O que o velho ditado quer dizer é que se você comer o bolo não haverá mais bolo. Você não pode guardar o bolo e consumi-lo também. Você pode ter uma coisa ou outra. Com freqüência quando digo isso as pessoas ficam chocadas. "O que você quer dizer, o celibato é necessário para a iluminação?" Eu digo, "Sim, isso é verdade", e elas dizem, "Com certeza não é assim," dando voltas e contorcendo-se, inconformadas.
Isso que eu disse provavelmente é algo com que vocês não irão concordar. Porque essa idéia vai completamente contra as suas percepções. Tomando conhecimento dessa idéia, os pensamentos a rejeitam. Vocês estão presos a esse ciclo. Mas e o Ajaan Brahm, ele não está aprisionado ao seu ciclo de idéias e percepções e pensamentos? Esse não seria também um condicionamento de monge? A única maneira de descobrir essas coisas é abrindo mão de todas as idéias e noções pré- concebidas - fazer com que a mente fique tão vazia e quieta que você possa na verdade ver as coisas como elas são realmente e não através dos olhos de um monge. Ver as coisas não através dos olhos de um homem ou mulher envolvidos na sexualidade, não através dos olhos de um Oriental ou Ocidental. Mas ver as coisas vazias de todos esses rótulos e pontos de vista, abrir mão um tanto que todas essas idéias, pontos de vista, pensamentos e sentimentos desapareçam por completo. Você quer saber como isso se chama? É chamado jhana, meditação profunda.
O que você tem de fazer para ser capaz de ver a verdade é chegar sorrateiramente, silenciosamente, invisível. Essa é a única forma de superar o condicionamento. No Budismo dizemos que os cinco obstáculos - desejo sensual, má vontade, inquietação e ansiedade, preguiça e torpor, dúvida - são aquilo que nos impedem de ver com clareza. Basicamente, o desejo sensual e a má vontade são os dois principais obstáculos. Eles só são superados naqueles estados meditativos profundos chamados jhanas. Os místicos, as pessoas que meditam e penetram estados profundos da mente, superam todos os seus condicionamentos temporariamente. Eles abrem mão de tudo que foram ensinados, tudo que eles alguma vez pensaram, tudo que possa ser verdade ou não, e aí, eles podem ver a realidade independente da condicionalidade. Aquilo que eles vêm não é o que eles esperam encontrar. Todos os insights profundos e a sabedoria iluminadora irão sempre causar um choque profundo, e eu realmente quero dizer um choque profundo. O que você não espera, aquilo que você não consegue imaginar é que é a verdade.
É por essa razão que toda intelectualização imaginável e cogitação não podem nunca chegar na verdade. Todo movimento da mente não chega ao objetivo. Só quando a mente estiver em silêncio, em profunda quietude, você poderá entender a verdade. Você compreenderá, particularmente, a natureza da mente, a natureza da felicidade, e só então você será capaz de ter um lampejo daquilo que no Budismo chamamos de "incondicionado." Somente quando se abre mão de tudo - tudo que foi aprendido, tudo que se esperava, tudo que foi descoberto ou que não se quer descobrir – é que a verdade é vista. Esse é o caminho para a iluminação. Essa é a razão porque todos os seres iluminados que conheci na minha vida, pessoas como Ajaan Chah, eram totalmente imprevisíveis. O condicionamento simplesmente não estava mais presente. Por essa razão, mesmo observando essas pessoas durante muitos anos, elas ainda assim nos surpreendem. Esse foi sempre o indicador de uma pessoa muito sábia. Ao invés de sempre agir com base no condicionamento elas são inovadoras incríveis, fazendo as coisas de um modo inesperado. Essa era uma das coisas surpreendentes em Ajaan Chah; você sempre tinha que estar de sobreaviso porque nunca poderia imaginar o que ele iria fazer. Ele sempre causava um choque, num instante rasgando-o em pedaços por fazer algo que você pensou ser irrelevante e em seguida oferecendo-lhe uma xícara de chá ou mandando uma xícara de chá especialmente para você. Com esse grau de "estar além das condições," não se sabia o que ele faria ou porque. Isso é o que queremos dizer com superar as condições.
Portanto, a moral da história é que, o quer que seja que você pense ser a verdade, você está enganado. Aquilo que você pensa ser correto não captou o essencial. Você pensa que tem controle dessas coisas, mas não tem. Mas você nunca será capaz de aceitar isso. É horrível demais. Veja por exemplo nibbana. As pessoas possuem idéias estranhas com relação a nibbana. Mas essas idéias na verdade não são nibbana, elas são apenas aquilo que as pessoas querem que nibbana seja. O que você quer que nibbana seja? É isso que você acreditará que nibbana é. Por essa razão, algumas vezes ensino aos monges que nibbana é a completa cessação, tanto assim que os monges chamam isso o buraco negro de Ajaan Brahm. Tudo é "chupado para dentro" e não sobra nada.
Os monges perguntam, "Porque você faz isso? É esse o objetivo, o objetivo disso tudo é alcançar o completo suicídio espiritual, mental e físico, com tudo cessando?" As pessoas querem desfrutar denibbana quando este ocorrer. A cessação é muito difícil de ser compreendida e aceita pelas pessoas. Mas eu digo que essa é a verdade. Como você interpreta isso? Você vai ter que descobrir por si mesmo! O Buda disse que os Budas só indicam o caminho. Eles indicam o caminho mas é cada um de nós que tem de caminhar por si mesmo.
Se você quiser descobrir o quanto você é condicionado, o quanto você foi completamente submetido à lavagem cerebral, então desenvolva meditações profundas e tenha a coragem de ficar chocado. Tenha a coragem de abrir mão de tudo incluindo o seu ego e o eu. Tenha esse grau de força pois somente os fortes alcançam a Iluminação. Não estou falando de força no corpo; estou falando sobre os corajosos dispostos a abrir mão de tudo em nome da verdade. Assim é como o condicionamento e a lavagem cerebral são superados, e finalmente a liberdade é conquistada. As pessoas neste mundo pensam que a liberdade é ser capaz de fazer o que elas quiserem, mas a cobiça, a raiva e a delusão as estão controlando. Elas não estão livres. Se vocês realmente quiserem a liberdade, superem esses condicionantes e vejam a realidade. Ela os surpreenderá, mas a verdade da Iluminação é muito agradável.


Se não houvesse apego, haveria condicionamento?

Quando temos consciência de estarmos condicionados? Estamos algumas vez conscientes disso? Você percebe que está condicionado, ou só percebe a existência de conflito e luta, em vários níveis da sua existência? Não temos consciência de nosso condicionamento, certamente, mas apenas de que há conflito, dor, prazer.
“O que você entende por conflito?”
Qualquer espécie de conflito: conflito entre as nações, entre vários grupos sociais, entre indivíduos, e o conflito existente dentro de nós mesmos. Não é inevitável o conflito, enquanto não se der a integração do agente e da ação, do desafio e da reação? O conflito é nosso problema, não acha? Não um determinado conflito, mas todo e qualquer conflito: a luta entre as ideias, entre as crenças, as ideologias, os opostos. Se não houvesse conflito não haveria problemas.
“Você está sugerindo que devemos buscar uma vida de isolamento, de contemplação?”
A contemplação é penosa; é uma das coisas mais difíceis de se compreender. O isolamento, que, consciente ou inconscientemente, cada um de nós está buscando, à sua maneira, não resolve os nossos problemas;pelo contrário, aumenta-os. Estamos tentando compreender quais são os fatores de condicionamento que criam novos conflitos. Só estamos conscientes de conflito, dor ou prazer, mas não estamos conscientes de nosso condicionamento. Qual é a causa do condicionamento? 
“As influências sociais e ambientes: a sociedade em que nascemos, o meio cultural em que crescemos, as exigências econômicas e politicas, etc.”
Exatamente; mas é só isso? estas influências são produtos de nós mesmos, não são? A sociedade é o resultado das relações de um homem com outro homem, o que é bastante evidente. Essas relações são de utilização, de necessidade, de conforto, de satisfação, e criam influências, valores, que nos prendem. Esse aprisionamento é nosso condicionamento. Estamos agrilhoados por nossos próprios pensamentos e ações; mas não estamos conscientes desses grilhões, e só percebemos o conflito, o prazer, a dor. Parece que nunca passamos daí, e, se o fazemos, passamos apenas a um novo conflito. Não estamos conscientes de nosso condicionamento, e enquanto não o estivermos, só poderemos produzir mais conflito e confusão.
“Como podemos estar conscientes de nossos condicionamentos?”
Só pela compreensão de um outro processo, o processo do apego. Se pudermos compreender a razão por que somos apegados, talvez então possamos perceber o nosso condicionamento.
“Isso não é dar uma volta muito grande, para atender uma questão direta?”
Você acha que é? tente ficar consciente de seu condicionamento. Não pode conhece-lo senão indiretamente, em relação alguma coisa. Não pode estar consciente de seu condicionamento como abstração, porque, nesse caso, trata-se apenas de um conhecimento verbal, sem muita significação. Nós só conhecemos o conflito. O conflito existe quando não há integração entre desafio e reação. Esse conflito é o resultado de nosso condicionamento. Condicionamento é apego: apego ao emprego, à tradição, à propriedade, a pessoas, ideias, etc. Se não houvesse apego, haveria condicionamento?  Decerto que não. Portanto, por que é que temos apego? Tenho apego ao meus país porque, pela identificação com ele, eu sou alguém. Identifico-me com o meu trabalho, e o trabalho se torna importante. Eu sou minha família, minha propriedade; estou apegado a eles. O objeto de meu apego oferece-me o meio de fuga de meu próprio vazio. O apego é fuga, e a fuga é que robustece o condicionamento. Se tenho apego a você, é porque você se tornou meu meio de fuga de mim mesmo; por isso, você é muito importante para mim, e tenho de lhe possuir, manter-me preso a você. Você se torna o fator de meu condicionamento, e a fuga é o condicionamento. Se nos tornarmos conscientes de nossas fugas, perceberemos então os fatores, as influências que produzem condicionamento.
“Estou fugindo de mim mesmo com meu trabalho social?”
Você está a ele, está preso a ele? Você se sentiria aniquilado, vazio, entediado, se não fosse ele?
“Estou certo de que assim me sentiria.”
Seu apego a esse trabalho é a sua fuga. Há fugas em todos os níveis da nossa existência. Você se refugia no trabalho, outro na bebida, outro nas cerimônias religiosas, outro no saber, outro em Deus, e outros, ainda, em vários divertimentos. Todas as fugas são iguais; não há fuga superior ou inferior. Deus e a bebida se acham no mesmo nível, quando representam meios de fuga àquilo que somos. Quando temos consciência de nossas fugas, só então podemos conhecer o nosso condicionamento.
“Que devo fazer, se deixar de fugir por meio da assistência social? Posso fazer alguma coisa sem estar fugindo? Toda e qualquer ação de minha parte não representa uma forma de fuga ao que sou?”
Esta pergunta é meramente verbal, ou reflete uma realidade, um fato que você está experimentando? Se você não fugisse, que aconteceria? Já experimentou isso?
“O que você diz é tão negativo, se posso assim me expressar. Você não oferece substituto algum para o meu trabalho.”
Toda substituição não constitui uma outra forma de fuga? Quando uma certa atividade não é satisfatória ou cria mais conflito, corremos para outra. Substituir uma atividade por outra, sem compreensão da fuga, é um tanto fútil, não acha? São essas fugas e nosso apego a elas, que produzem condicionamento. O condicionamento cria problemas, conflitos. É o condicionamento que nos impede a compreensão do desafio; visto que estamos condicionados, a nossa reação tem de criar, inevitavelmente conflito.
“Como se pode ficar livre de condicionamento?” 
Só pela compreensão, pelo percebimento de nossas fugas. Nosso apego a uma pessoa, um trabalho, uma ideologia, é o fator condicionador; temos de compreende-lo, em vez de buscarmos uma fuga melhor ou mais inteligente. Todas as fugas são ininteligentes, já que inevitavelmente produzem conflito. O cultivo do desapego constitui uma outra maneira de fuga, de isolamento; é apego a uma abstração, a um ideal. O ideal é coisa fictícia, produto do “eu”, e tornar-se o ideal representa uma fuga ao que é. Só há compreensão de o que é e ação adequada em relação ao que é, quando a mente já não está a buscar refúgios. O próprio pensar a respeito do que é, é fuga ao que é. Pensar no problema é fugir do problema; porque o pensamento é o problema, o único problema. A mente que não deseja ser o que é, que teme o que é, busca esses vários modos de fuga; e a via de fuga é o pensamento. Enquanto houver pensamento, haverá necessariamente fugas, apegos, que só podem fortalecer o condicionamento. Libertamo-nos do condicionamento quando nos libertamos do pensar. Quando a mente está tranquila de todo, só então há liberdade, para a existência do Real.
Krishnamurti – Reflexões sobre a vida