A Realidade Condicionada
Por
Ajaan Brahmavamso
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De outra forma todos os direitos estão reservados.
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Os temas que com freqüência surgem no
Budismo são o condicionado e o incondicionado, especialmente se alguém está em
busca da verdade, em busca da realidade, em busca da liberdade. Pessoas que
tenham estudado os princípios de psicologia, ou que tenham algum conhecimento
da natureza das coisas, sabem o quanto somos condicionados por kamma, pelas
nossas experiências e por tantas coisas diferentes. Essas condições na verdade
afetam o modo como vemos o mundo e como experimentamos a realidade. Elas também
afetam as nossas escolhas e o modo como usamos a nossa vida. Quando olhamos bem
no fundo, podemos ver que as nossas escolhas condicionam as nossas vidas, mas
as nossas escolhas não são livres. Há muitas influências que fazem com que
façamos as coisas que fazemos. A maneira que vemos as coisas não é "como
elas na verdade são". Muitas pessoas já observaram que vemos, ouvimos e
experimentamos aquilo que queremos experimentar e que queremos ver. Essa é a
razão porque a nossa realidade difere da realidade da pessoa que está sentada
ao nosso lado.
O Ciclo da Delusão
Nós criamos e fazemos a nossa própria
realidade, o nosso próprio mundo. Vivemos nesse mundo. Condicionamos esse
mundo. Falei brevemente antes sobre a idéia Budista de Deus, especialmente
sobre a criação e se os Budistas acreditam no "Big Bang", ou no
começo das coisas. A pessoa que me fez essa pergunta mencionou corretamente que
uma das coisas que podemos saber é que existe um criador dentro de nós. Nós
criamos o nosso mundo. O modo pelo qual condicionamos o nosso mundo depende em
grande parte de influências externas. As pessoas querem ser livres e falamos
muito no ocidente sobre a liberdade, mas se olharmos mais fundo, veremos que
aquilo que tomamos como liberdade está preso pelos grilhões do condicionamento.
No Budismo, o objetivo é ver esse condicionamento, reconhecê-lo e destruir
esses grilhões.
Temos, no Budismo, um ensinamento
chamado os dez grilhões. Grilhão é uma boa tradução da palavra, em pali, samyojana.
Empregando as idéias da sociedade agrária na Índia 2.500 atrás,yojana significa o colar de madeira usado
para unir um par de bois para tração. Assim é como se uniam os bois para puxar
uma carroça. Isso é um grilhão, uma atadura. A idéia no Budismo é reconhecer
que estamos atados e depois desatar essa atadura para alcançar um tipo de
liberdade que não é reconhecida neste mundo, a liberdade de uma pessoa
iluminada.
As pessoas, algumas vezes, pensam que
os monges estão unicamente apegados a regras: apegados ao celibato, apegados ao
fato de terem poucas coisas e apegados à idéia de serem felizes. Elas não se
dão conta de que se trata da liberdade dos grilhões e da liberdade do
condicionamento. As pessoas não se dão conta do que na verdade são esses
condicionamentos. Temos as nossas manchas cegas, aquilo que definitivamente não
enxergamos, mas no entanto pensamos que somos livres-pensadores. Pensamos que
somos racionais e científicos. Tendo trabalhado com a ciência como físico
teórico na Universidade de Cambridge, eu percebi que mesmo ali muitos
cientistas não são livres-pensadores. Eles são condicionados. Muito daquilo que
eles fazem está completamente carregado do sistema de valores que eles trazem
consigo, e com freqüência eles encontram aquilo que estão querendo encontrar ao
invés daquilo que ali está.
Li um artigo num jornal, acerca de um
debate, sobre o fato da ciência ou o "método científico" estar ou não
livre de valores, em outras palavras, se é subjetivo. O debate dizia respeito à
engenharia genética nos alimentos. Os cientistas diziam serem racionais, que
não há nada de errado com a engenharia genética. Outras pessoas diziam que há
muitas coisas erradas nisso. Quem está certo e quem está errado? Os cientistas
diziam que as outras pessoas eram completamente irracionais e só enxergavam o
assunto através do seu sistema de valores. Como os cientistas não possuem um
sistema de valores, eles vêm as coisas como elas realmente são! A discussão
estava encerrada para muitos cientistas e filósofos. Mas quem diz que a ciência
está livre de valores? Existem tantos condicionamentos na ciência que fazem com
que somente aquilo que quer ser visto seja visto. Tanto assim que existe um
velho ditado na ciência:
‘A eminência de um grande cientista é
medida
pelo tempo que ele impede o progresso no seu campo de ação.'
pelo tempo que ele impede o progresso no seu campo de ação.'
Quanto mais famoso o cientista e mais
proeminente ele for, tanto mais as suas idéias serão tomadas como verdades
sagradas. Isso significa que um grande cientista é tão eminente que ele ou ela
não podem estar errados. Assim eles na verdade obstruem o progresso durante
muitos anos porque eles devem estar certos e todos os demais enxergam sob essa
perspectiva.
O Buda delineou de modo muito claro
todo o processo condicional. Ele explicou que nós vemos o mundo através de
lentes coloridas. Ele explicou que aquilo que tomamos como verdade, como real,
está muito distante da realidade. Ele chamou esse processo de condicionamento e
lavagem cerebral, que provêm principalmente do nosso interior, de vipallasas.
Elas são o aspecto distorcido de todo o processo condicional. Elas são a razão
porque aquilo que pensamos saber acaba se revelando incorreto. Alguma vez você
tinha absoluta certeza de que estava certo e depois descobriu que estava
errado? Isso acontece o tempo todo. As vipallasas,
essas distorções do processo condicional, operam num ciclo, um ciclo de
delusão. As nossas idéias - que compreendemos como verdades, como realidade -
influenciam as nossas percepções. Basicamente, as nossas idéias influenciam
aquilo que escolhemos ver, ouvir e experimentar. De todas as distintas
impressões que a vida nos oferece há muitas coisas das quais você poderia ter
consciência neste momento. Você poderia estar consciente daquilo que estou
dizendo. Você poderia estar consciente somente da minha aparência. Você poderia
estar consciente de algumas fantasias dando voltas na sua mente. Como você
decide ter consciência de uma coisa ao invés de outra? É porque as suas idéias
guiam a sua escolha.
Se você sentir raiva de alguém, ou
tiver má vontade, você irá encontrar algo neles para justificar aquela má
vontade. A pessoa diz, "Tenha um dia maravilhoso hoje", e você pensa
"O que diabos ela quer dizer com isso?" É o mesmo processo que a
paranóia. Se alguém estiver realmente paranóico, ele poderá pensar que um monge
é capaz de ler a mente. O monge diz, "Não, eu não sou," e ele diz
"Eu sabia que você ia dizer isso." Um psiquiatra me disse, faz alguns
dias, que você pode apenas aumentar a paranóia, não é possível diminuí-la.
Qualquer coisa que se diga, aquela pessoa irá tomar como confirmação da sua idéia.
Se você estiver apaixonado por alguém não importa o que ele ou ela faça ou
diga. Se ele ou ela enfiarem o dedo no nariz, assim o fazem com tamanho charme.
Você pensa, "Eu amo o modo como você faz isso."
A percepção é completamente controlada
pelas nossas idéias. Vou ler uma história apenas para ilustrar isso. A história
é chamada de "A Perda de Harvard". O presidente da universidade de
Harvard cometeu um erro ao prejulgar pessoas e isso lhe custou muito. Uma
senhora num vestido de algodão puído, junto com o seu marido vestindo um terno
caseiro surrado, chegaram num trem em Boston, Massachusetts, e com timidez
foram para o escritório do presidente da universidade sem ter entrevista
marcada. A secretária franziu a testa. Num instante ela foi capaz de estabelecer
que aqueles caipiras não tinham nada a tratar na universidade de Harvard e
provavelmente nem mereciam estar em Cambridge. "Nós queremos ver o
presidente" o homem disse com suavidade. "Ele estará ocupado o dia
todo" a resposta brusca da secretária. "Nós esperaremos", a
senhora respondeu.
A secretária os ignorou por horas na
esperança de que o casal finalmente desanimasse e fosse embora, mas eles não
foram. A secretária começou a se sentir frustrada e finalmente decidiu
perturbar o presidente, muito embora essa fosse uma tarefa que ela sempre
lamentava ter de fazer. "Talvez se eles o virem por alguns minutos decidam
ir embora", ela disse para o presidente da universidade de Harvard.
Exasperado ele suspirou e concordou com a cabeça. Alguém tão importante como
ele é óbvio que não teria tempo para gastar com essa gente, mas ele odiava que
vestidos de algodão barato e ternos caseiros poluíssem a recepção do seu
escritório. O presidente, com austera dignidade expressa no rosto, pavoneou em
direção ao casal. A senhora lhe disse, "Nós tivemos um filho que estudou
na Harvard durante um ano. Ele amava a Harvard e se sentia muito feliz aqui,
mas faz um ano ele morreu num acidente. Então, meu marido e eu gostaríamos de
erigir para ele um memorial em algum lugar no campus." O presidente não
foi sensibilizado, ele estava chocado. "Madame", disse ele com
irritação, "não podemos colocar uma estátua para cada pessoa que estudou
na Harvard e que tenha morrido, se fizéssemos isso o lugar pareceria um
cemitério." "Ah, não", a senhora rapidamente explicou. "Não
queremos erigir uma estátua. Pensamos em doar um prédio para a Harvard." O
presidente mexeu os olhos enfadado. Ele olhou para o vestido de algodão e o
terno caseiro e exclamou, "Um prédio! Vocês têm alguma idéia de quanto
custa um prédio? (Isso aconteceu faz muitos anos). Nós temos mais de sete
milhões e meio de dólares em investimentos na Harvard." Por um momento a
senhora ficou em silêncio.
O presidente ficou satisfeito, ele poderia se livrar deles
agora. A senhora se voltou para o marido e disse calmamente, "Se esse é o
custo para começar uma universidade, porque não começamos a nossa," e o
marido concordou com a cabeça. O rosto do presidente murchou com confusão e
surpresa. O Sr. e Sra. Leyland Stanford foram embora, viajaram até Palo Alto na
Califórnia, onde estabeleceram uma universidade conhecida como Stanford
University que leva o nome deles. Foi um memorial para um filho em relação ao
qual a Harvard já não mais se importava.
Não é uma bela história? Só porque aquelas
duas pessoas estavam vestidas com roupas simples ninguém percebeu que elas eram
milionárias e desse modo elas deram início à sua própria universidade. Não é
isso que ocorre com tanta freqüência na vida?
Aquilo que estamos procurando é o que
vemos. Essa é a razão porque o Buda ensinou que até mesmo a percepção neutra,
já está condicionada. Mesmo aquilo que ouvimos - ou melhor aquilo que
escolhemos ouvir - aquilo que escolhemos ver, escolhemos sentir, já foi
filtrado pelo nosso condicionamento, pelos nossos apegos, pelos nossos desejos
e cobiças. Essa é a razão porque mesmo o ensinamento de Krishnamurti, um tipo
de atenção silenciosa, ou não-agir, não seria suficiente para descobrir a
verdade genuína. Aquilo que vemos e ouvimos nunca é confiável. Essa é a razão
porque algumas vezes quando dou palestras, digo uma mensagem, mas aquilo que
vocês ouvem pode ser diferente. Alguma coisa acontece com as palavras que digo
antes que elas cheguem na consciência de vocês. Algumas coisas são filtradas!
Isso já aconteceu alguma vez com vocês? Vocês alguma vez já disseram uma coisa
e foi completamente desentendida? Vocês dizem, "Eu não disse isso", e
a outra pessoa diz, "Sim, você disse”. Você disse muitas coisas, mas elas
foram filtradas ou retiradas do contexto original. Assim é como surgem os
mal-entendidos. Quando começamos a entender o modo como esse processo cognitivo
funciona, podemos entender como condicionamos até mesmo as nossas percepções
genuínas.
Com essas percepções fabricamos os
nossos pensamentos. Esse conhecimento básico que chega na mente quando
sentimos, quando vemos, constrói os nossos pensamentos. E esses pensamentos por
seu lado confirmam as nossas idéias. Temos esse ciclo de idéias flexionando as
nossas percepções para satisfazer os seus propósitos, e essas percepções,
novamente flexionando os pensamentos para confirmar as idéias. Essa é a razão
porque temos diferentes idéias, filosofias e religiões no mundo. Uma dessas
religiões é a ciência. Outra pode ser a psicologia, e outras podem ser o humanismo,
o irracionalismo, o agnosticismo ou mesmo o Budismo. Todas essas são diferentes
idéias e opiniões presentes no mundo. Aquilo que realmente me interessava
quando eu era jovem era a origem dessas idéias e opiniões. Porque pessoas
racionais acreditam num Deus que criou este mundo e que ao mesmo tempo criou o
Diabo apenas para importunar as pessoas? Isso era muito difícil de entender.
Outros pontos de vista, por exemplo, a idéia de condicionamento moldado pelas
nossas idéias, pensamentos e percepções, esclarecia como isso estava
acontecendo. Aquilo que recebemos do mundo está basicamente condicionado por
aquilo que esperamos receber.
Negação (ou Não Aceitação)
Agora vou ler um poema. Ouçam este
poema. É sobre o amor por uma mãe e todos sabem que isso é um sentimento
maravilhoso.
‘Quando a sua mãe estiver envelhecendo
e você estiver envelhecendo,
quando aquilo que antes era fácil e não requeria esforço se tornar um fardo,
quando os olhos, amados e leais, não mais encararem a vida como antes,
quando as pernas se tornarem cansadas e não mais quiserem carregá-la,
então ofereça o seu braço como apoio, acompanhe-a com alegria e felicidade,
porque chegará a hora, em lágrimas, em que você a acompanhará na sua última jornada;
quando aquilo que antes era fácil e não requeria esforço se tornar um fardo,
quando os olhos, amados e leais, não mais encararem a vida como antes,
quando as pernas se tornarem cansadas e não mais quiserem carregá-la,
então ofereça o seu braço como apoio, acompanhe-a com alegria e felicidade,
porque chegará a hora, em lágrimas, em que você a acompanhará na sua última jornada;
E se ela lhe perguntar algo responda sempre,
e se ela novamente perguntar fale assim mesmo,
e se ela mais uma vez perguntar, não responda num tom brusco mas com gentileza, em paz,
e se ela não compreendê-lo bem, explique tudo com bom humor,
porque chegará a hora, amarga hora, em que a boca da sua mãe não mais perguntará.’
e se ela mais uma vez perguntar, não responda num tom brusco mas com gentileza, em paz,
e se ela não compreendê-lo bem, explique tudo com bom humor,
porque chegará a hora, amarga hora, em que a boca da sua mãe não mais perguntará.’
Esse é um poema que foi traduzido do
alemão, escrito em 1923 por um alemão muito conhecido chamado Adolf Hitler.
Você sabia que Adolf Hitler era um poeta e que ele amava muito a sua mãe e que
pensava muito no amor que ele sentia por ela? Não! Pois bem, não será porque as
nossas idéias são que um homem como esse foi tão ruim e perverso que nunca
poderíamos contemplar a idéia de que ele tivesse um lado emocional tão suave?
Quantos de vocês podem imaginar os seus
ex-maridos ou ex-esposas como um "Adolf Hitler"? Vocês percebem o que
estou dizendo? O processo de condicionamento significa que se pensamos que
alguém é um inimigo, então pensamos que eles não prestam. Pensamos que eles são
ruins e isso é tudo que vemos. Podemos pensar, "eu não presto",
"eu sou ruim", "eu sou horrível", e isso é tudo que vemos.
O processo de condicionamento é tão forte que as pessoas algumas vezes ficam
tão deprimidas que são capazes de se suicidarem. Ou elas ficam tão convencidas
que se tornam egocêntricas e não ouvem ninguém. Tudo isso é apenas o
condicionamento operando de três formas. Não pense que você está livre disso.
Mesmo agora você não está ouvindo aquilo que estou dizendo mas aquilo que você
quer ouvir, aquilo que você espera ouvir. Essa é a dificuldade para os seres
humanos, ser capaz de saber a verdade das coisas.
Outro exemplo é o renascimento ou
reencarnação. É um assunto fascinante: não se é falso ou verdadeiro, mas porque
as pessoas acreditam que seja falso ou verdadeiro. Isso é algo que me fascinou
durante anos. Porque é que quando alguém possui alguma recordação de um
renascimento e elas se lembram daquilo com clareza, as outras pessoas com
freqüência dizem, "Não, não pode ser isso, tem de haver alguma outra
explicação"? Ou, porque é que quando algo lhe acontece, você acredita que
aquilo se deve a algum acontecimento numa vida passada? Porque as opiniões em
cada lado são tão fortes? Eu tenho um interesse especial na razão porque as
pessoas se recusam a acreditar no renascimento. Como um cientista ou uma pessoa
racional, no mínimo as pessoas deveriam ter a mente aberta. Para mim era algo
bastante óbvio, algo com o que eu convivi desde criança. Meus pais não eram
Budistas mas o renascimento sempre me pareceu algo tão óbvio. Não sei como adquiri
essa idéia, mas ela estava presente. Descobri que nos países do Ocidente, como
a Austrália, ou quando vou visitar meus familiares na Inglaterra, existe uma
grande resistência contra a idéia do renascimento. Não é que as pessoas tenham
mentes abertas; na verdade elas têm as mentes bem fechadas, uma porta trancada
contra essa idéia. Quando olhei em profundidade, vi com clareza que as pessoas
sentem um forte antagonismo contra a idéia do renascimento. A principal razão
pela qual as pessoas temem o renascimento é porque elas não querem renascer.
Elas querem apenas viver esta vida e fim. Essa é uma das razões porque as
pessoas se recusam até mesmo a considerar evidências claras de que elas tiveram
uma outra vida antes e de que irão viver novamente.
Quer seja Budismo, Cristianismo ou
Hinduísmo, ou qualquer outra, o renascimento conduz a uma nova vida. Não
importa a religião ou a sua crença, a próxima vida sempre depende do que você
tenha feito nesta vida. Basicamente, a maioria das pessoas se comporta tão mal que
elas têm medo do que lhes possa acontecer na próxima vida. Elas preferem
acreditar que não haverá uma nova vida. Elas se recusam a reconhecer uma
verdade desagradável! De onde vem essa negação? Novamente, é o condicionamento
e a lavagem cerebral, "Eu não quero acreditar que isso seja verdade. Eu
não quero ver isso e portanto não vejo."
Outro exemplo vem de uma aluna. Muitos
anos atrás, ela estava com um grande problema porque o seu marido estava
abusando sexualmente dos filhos. Ele foi para a cadeia. Durante muitos meses
ela não foi capaz de ver o que estava acontecendo. Ela era uma mãe carinhosa e
esposa dedicada. Como acontece algumas vezes nesses casos terríveis, tudo foi
descoberto na escola. Os professores perceberam alguns indícios e ao
investigarem descobriram que a situação tinha sido avaliada corretamente e que
as crianças estavam sendo vítimas de abuso sexual. A mãe se sentiu muito
culpada, mas como pode ter acontecido dela não ter sido capaz de enxergar os
indícios? Como monge Budista - que conhece a mente, conhece o condicionamento,
conhece a psicologia disso tudo - eu tive que lhe explicar a razão porque ela
não conseguia ver aquilo que os outros viam. A situação era tão horrível que no
subconsciente ela não queria ver aquilo. Se você não quiser ver algo,
simplesmente não será capaz de ver. Não é uma questão de supressão, que é feita
às claras. O bloqueio ocorre no nível subconsciente. Ocorre antes que o
processo entre na consciência. Já foi filtrado antes disso.
Há um experimento muito interessante
que foi feito faz alguns anos na universidade de Harvard. Os psicólogos
projetaram imagens instantâneas numa tela e pediram aos estudantes voluntários
que escrevessem o que eles pensavam que as imagens representavam. A projeção
foi tão rápida que no início eles não eram capazes de perceber do que se
tratava. Pouco a pouco o tempo de exposição foi aumentado até que eles pudessem
registrar alguma idéia do que se tratava. Então o tempo de exposição foi
aumentado ainda mais de modo que os estudantes pudessem registrar se a imagem
era aquilo que eles pensavam, até que o tempo de exposição foi longo o
suficiente para que eles pudessem dizer com certeza do que se tratava.
O resultado pode ser ilustrado com um
exemplo. A imagem projetada era de um lugar bastante conhecido no campus, um
lance de escadas que levava a um dos prédios administrativos. Havia uma
bicicleta ao lado dos degraus. Um estudante viu aquilo como um navio no oceano,
mas como a imagem foi projetada por tão pouco tempo, foi apenas um palpite. No entanto,
uma vez que aquela idéia entrou na sua mente, quando o tempo de exposição foi
sendo aumentado gradualmente, ele ainda assim, a cada vez, viu um navio no
oceano. Ele viu um navio mesmo quando todos os demais foram capazes de enxergar
que se tratava daquele lugar no campus. Ele insistiu que era um navio no oceano
até que o tempo de exposição foi tão longo que ele por fim acabou vendo e
corrigindo o seu erro. A lição foi que uma vez que uma idéia tenha sido
formada, ela interfere tanto com as nossas percepções que mesmo estando a
imagem na frente do nariz, não somos capazes de vê-la. Vemos de um modo
diferente daquilo que na verdade é.
Uma das imagens no experimento custou
muito trabalho para que os estudantes identificassem; era uma fotografia de
dois cães copulando. Era uma imagem tão obscena ou desagradável de ser vista
que os estudantes simplesmente negaram a sua existência, uma vez, outra vez,
outra vez, até que por fim estava tão óbvio que tiveram de enxergar o que era
na verdade. Essa é uma sólida evidência daquilo que o Buda chamava de
distorções do nosso processo cognitivo. Muito embora pensemos que sabemos
aquilo que o nosso parceiro está dizendo, muito embora pensemos que sabemos
quem ele/ela é, com muita freqüência estamos errados. Isso ocorre não somente
no relacionamento com os outros, mas também no relacionamento conosco mesmo.
Vendo a Verdade e a Realidade
Particularmente, quero mencionar a
relação com a verdade. Será o Budismo apenas mais uma crença condicionada como
todo o resto, sem qualquer maior legitimidade do que a ciência ou qualquer
outra religião? Não existe uma verdade? Será tudo relativo de acordo com o
nosso condicionamento? Em outras palavras, como podemos romper esse modo
condicionado de ver e perceber? Lembremos que o motivo porque flexionamos as
nossas percepções, pensamentos e idéias é devido ao desejo. Nós vemos e ouvimos
aquilo que desejamos ver e ouvir, e negamos aquilo que não desejamos ver, ouvir
ou sentir. É o desejo que é o problema. É o desejo que condiciona o nosso
afastamento da verdade.
O Buda se tornou um Iluminado abrindo
mão de todo desejo. Ao invés de desejar ver o universo de um modo particular,
ou desejar ver a si mesmo de algum modo particular, ele superou todo esse
desejo ou cobiça. Isso não é algo fácil de ser feito. É chamado de "abrir
mão", aquietar. O sinal do desejo é o movimento. O sinal do apego é não
ser capaz de abrir mão. O sinal do ego é o controle. É por isso que encontramos
tudo isso na meditação: desejos, apegos e controle, repetidamente. Essas coisas
nos impedem de ver a verdade e a realidade. Temos que abrir mão por completo de
todo desejo e cobiça, temporariamente, na nossa meditação.
A maioria de vocês meditou por apenas
meia hora. No final da meditação eu lhes disse para verem como se sentem, para
analisarem aquilo que funciona e o que não funciona na meditação. Esse é um
exercício de superação do condicionamento. É verdadeiramente uma limpeza da
mente de todos os seus condicionamentos, todos os seus desejos, todos os
anseios de ver as coisas de um modo ou de outro. É abrir mão de tudo isso,
abrir mão de todas as idéias, porque estas são os tijolos e a argamassa do
condicionamento. Vocês já perceberam que quando nos deparamos com alguma coisa,
nós a interpretamos com os pensamentos? De onde vêm todos esses pensamentos?
Porque vemos aquilo deste modo e não de um outro modo? A razão é o nosso
condicionamento.
Alguns dias atrás alguém deu para os
monges um refresco no que parecia ser uma garrafa de vinho. Parecia vinho, mas
não era vinho; não continha álcool; era apenas um refresco. Esse incidente fez
com que os monges conversassem sobre álcool e ingestão de bebidas alcoólicas.
Os outros monges contaram sobre experiências que eu também tive na minha
juventude, quando pela primeira vez fui a um bar na Inglaterra para tomar o meu
primeiro copo de cerveja. Minha primeira reação foi, "Esse negócio é
horrível; como pode alguém bebê-lo? Porque as pessoas gastam tanto dinheiro
bebendo esse tipo de coisa?" Essa primeira percepção provavelmente foi
verdadeira; a cerveja amarga era nojenta. Mas, passado algum tempo, eu comecei
a gostar. Eu fiquei me perguntando o que teria acontecido. Porque foi que
quando provei a cerveja pela primeira vez foi horrível e depois quando eu tinha
dezoito ou dezenove anos, eu estava bebendo muito daquilo? Eu vi que o motivo
foi porque beber cerveja era aceito socialmente e todos diziam que era
delicioso. Eu recondicionei os meus sentidos para gostar daquilo. Como a
sociedade dizia que era delicioso, aquilo se tornou delicioso. Eu gostava
porque queria gostar. Isso é tudo.
Também vi isso com a arte moderna. O
que há de belo na arte moderna? Alguém me contou que houve um artista na França
que convenceu uma galeria de arte a montar uma exposição sua. Eram apenas
molduras vazias numa parede vazia. Aquilo foi uma afirmação; ele vendeu os
quadros por milhares de dólares. Você alguma vez já viu isso acontecer no
mundo? O que foi isso que acabamos de ouvir? Foi um belíssimo som ou o ruído
incomodativo de um telefone celular? Não é o nosso condicionamento que faz com
que vejamos de um modo particular? Se sabemos que a mente é condicionada,
porque não condicioná-la de um modo sábio que gere felicidade? Se for um
telefone celular você terá duas opções. Você poderá dizer, "Esse é um som
muito agradável, muito musical, não como os telefones antigos, 'ring, ring,
ring, ring'. Pelo menos nestes dias temos um pouco mais de charme." Ou
você poderá dizer, "Não se deveriam permitir telefones celulares aqui.
Quem fez isso? Vou falar com eles mais tarde. Deveríamos expulsá-los da
Sociedade Budista. Não vamos mais permitir a entrada deles aqui." Então,
qual resposta você prefere? Vocês podem ver como nos condicionamos?
Uma vez que saibamos como o
condicionamento funciona podemos nos condicionar com a compaixão e a
felicidade. Uma das primeiras coisas que podemos fazer é dizer, "Bem, eu
tenho escolha. Posso desenvolver o condicionamento positivo ou o
condicionamento negativo. Posso olhar para uma pessoa e ver as suas qualidades
positivas ou posso olhar para a mesma pessoa e ver as suas qualidades
negativas. Ambas estão ali." Desde que me tornei monge, eu me condicionei
ao longo dos muitos anos a ver nas pessoas as suas boas qualidades, tanto assim
que sou advertido pelas pessoas para ser um pouco mais crítico. Mas agora não
posso fazer isso. O condicionamento é demasiado forte. As pessoas no
monastério, ou os monges com os quais convivo, algumas vezes fazem coisas
erradas. Outro dia, enquanto eu estava fora, houve uma discussão com algum
rancor sobre uma decisão a respeito dos livros no nosso monastério. Conversei
com uma das pessoas - que estava se sentindo muito ofendida - e disse,
"Veja bem, eu não posso me sentir ofendido por nenhum dos monges neste
monastério. Eles são pessoas tão amáveis e boas. Nós sabemos que nem todos são
iluminados e que todos nós também temos qualidades ruins." Eu estava sendo
absolutamente honesto. Eu não consigo ficar irritado com nenhum dos monges no
monastério, não importa o que eles façam, porque eu vejo neles muitas coisas
boas. Mesmo as pessoas que vêm ao Centro Budista, não importa o que vocês
façam, vocês possuem tantas boas qualidades. Assim é como o meu condicionamento
funciona agora. Quando você percebe as qualidades boas numa pessoa é impossível
ficar irritado ou aborrecido com ela. Vocês todos são meus amigos e se eu os
vejo dessa forma é muito difícil enxergar outra coisa. Se você tentar fazer
alguma coisa para me ferir, eu diria, "Não, não, eu me lembro de todas as
coisas boas que você fez."
Porque é que quando alguém diz alguma
coisa para irritá-lo, só isso é lembrado? Nunca nos lembramos de todas as
gentilezas que nos foram feitas, todas as palavras gentis que nos foram ditas.
Eu sou o oposto. Esqueço todas as coisas desagradáveis que as pessoas disseram
a meu respeito e só me lembro das coisas boas. Qual dos dois é mais verdadeiro?
Ambos são igualmente errados. Mas eu escolho aquele que é errado, porém feliz.
É interessante que esse tipo de condicionamento - ver o lado positivo, ver a
felicidade, o positivo em você mesmo, a felicidade na vida, a felicidade nas
outras pessoas - também é o caminho que conduz ao descondicionamento e ao
incondicionado, a ver as coisas com clareza.
Quando você cultiva a felicidade na sua
vida - livrando-se da negatividade e da má vontade em relação a si mesmo e aos
outros - isso proporciona espaço suficiente para estar em paz. Estar em paz
significa abrir mão dos desejos. Uma vez que você se sinta satisfeito no
momento presente, então existe a oportunidade para abrir mão do desejo e estar em paz. Esse é o caminho
ensinado pelo Buda. Tendo uma atitude positiva em relação à vida, cultivando a
felicidade na mente, a mente se torna pacífica e tranqüila. Com essa
tranqüilidade, quando os desejos e cobiças são subjugados temporariamente, você
começa a ter clareza mental – a não ver as coisas como você quer vê-las, mas
como elas na verdade são. Você só será capaz de fazer isso a partir de um
estado de tranqüilidade e felicidade.
É parecido com um truque para fazer com
que você se sinta muito feliz e em paz. Lendo os suttas eu percebi que assim é como
o Buda ensinava. Ele despertava o interesse nas pessoas falando sobre coisas do
dia a dia e depois, quando ele percebia que a audiência estava realmente
ouvindo e que estavam se sentindo felizes, então ele comunicava o ensinamento.
Ou como disse um monge Tibetano, quando todos estavam rindo com as bocas
abertas, então ele colocava o remédio. O remédio é a quietude e a paz, porque
descobrimos que aqui não há ninguém, anatta,
não-eu. Descobrimos que aquilo que considerávamos livre escolha é completamente
condicionado. Você pensa que está controlando tudo. Você pensa que escolheu vir
aqui. Você pensa que decidiu tossir ou mover o seu braço deste modo ou daquele
modo. Eu analisei as minhas escolhas, a minha vontade, durante muitos anos,
estudando aquilo que era condicionado e o que tinha origem no meu eu, e
descobri que tudo era condicionado. É por isso que repito sempre as mesmas
piadas, não posso fazer nada. Não sou eu, é o condicionamento.
Onde a Vontade Cessa
Já faz muitos anos que venho dando
palestras em Perth.
Alguns anos atrás, sucedeu algo comigo; eu tive uma
experiência que me deixou profundamente chocado. Foi uma dessas experiências
fortes. Isso aconteceu antes deste Salão do Dhamma ter sido construído.
Costumávamos dar as palestras do Dhamma no centro comunitário vizinho e a nossa
biblioteca estava no que é hoje a recepção. Um sábado pela manhã, eu estava
dando uma olhada nas fitas de áudio e vi uma fita K7 de uma palestra que havia
sido dada fazia sete anos. Era o mesmo tema da palestra dada na noite anterior.
O que havia sido dito na noite anterior ainda estava fresco na minha memória e
pensei em comparar as duas palestras para ver o quanto tinha mudado em sete
anos. Queria ver se a palestra dada na noite anterior tinha diferenças
marcantes daquela dada há sete anos. Quando ouvi aquela fita, senti calafrios
na espinha. Percebi que eu estava repetindo parágrafos inteiros quase que
palavra por palavra depois de sete anos de intervalo entre as duas palestras.
Na noite anterior eu realmente pensei que estava escolhendo cada palavra com
completa liberdade de escolha e que a minha interpretação e percepção eram
novas, mas a coincidência foi demasiada. Se eu realmente tive livre escolha
porque o resultado foi o mesmo, parágrafo por parágrafo? Isso me mostrou que
aquilo que eu pensava ser livre, não era livre de jeito nenhum, mas
completamente condicionado.
Isso realmente me afetou porque abalou
o meu sentido de eu, meu sentido de vontade, meu sentido de direção no mundo.
Quem na verdade estava mexendo os pauzinhos? Quem decidia e fazia as escolhas?
Isso me assustou muito, mas também me deu uma intuição que fui capaz de seguir
e que me conduziu a uma meditação profunda. Quando não resta ninguém, quando
não há mais volição, quando as escolhas cessam e têm fim, aí é que podemos na
verdade entender algo sobre o incondicionado.
Muitas pessoas têm dificuldades em
aceitar a idéia do não-eu porque o nosso condicionamento não nos permite ver
isso. As pessoas têm muita dificuldade com o ensinamento do Buda sobre o
sofrimento, dukkha.
Porque? Porque elas não querem admitir que a vida é sofrimento. A idéia de
monges celibatários é muito difícil. Nós ainda queremos ter os nossos
relacionamentos sexuais. Os artigos nas revistas, escritos por pessoas que
estão tentando ter sexo e realizar a iluminação ao mesmo tempo, parecem não ter
fim. Isso é o que as pessoas querem. Como diz o velho ditado, "elas querem
comer o bolo e guardar o bolo ao mesmo tempo." Não é possível guardar o
bolo e comê-lo ao mesmo tempo. O que o velho ditado quer dizer é que se você
comer o bolo não haverá mais bolo. Você não pode guardar o bolo e consumi-lo
também. Você pode ter uma coisa ou outra. Com freqüência quando digo isso as
pessoas ficam chocadas. "O que você quer dizer, o celibato é necessário
para a iluminação?" Eu digo, "Sim, isso é verdade", e elas
dizem, "Com certeza não é assim," dando voltas e contorcendo-se,
inconformadas.
Isso que eu disse provavelmente é algo
com que vocês não irão concordar. Porque essa idéia vai completamente contra as
suas percepções. Tomando conhecimento dessa idéia, os pensamentos a rejeitam.
Vocês estão presos a esse ciclo. Mas e o Ajaan Brahm, ele não está aprisionado
ao seu ciclo de idéias e percepções e pensamentos? Esse não seria também um
condicionamento de monge? A única maneira de descobrir essas coisas é abrindo
mão de todas as idéias e noções pré- concebidas - fazer com que a mente fique
tão vazia e quieta que você possa na verdade ver as coisas como elas são realmente
e não através dos olhos de um monge. Ver as coisas não através dos olhos de um
homem ou mulher envolvidos na sexualidade, não através dos olhos de um Oriental
ou Ocidental. Mas ver as coisas vazias de todos esses rótulos e pontos de
vista, abrir mão um tanto que todas essas idéias, pontos de vista, pensamentos
e sentimentos desapareçam por completo. Você quer saber como isso se chama? É
chamado jhana, meditação
profunda.
O que você tem de fazer para ser capaz
de ver a verdade é chegar sorrateiramente, silenciosamente, invisível. Essa é a
única forma de superar o condicionamento. No Budismo dizemos que os cinco
obstáculos - desejo sensual, má vontade, inquietação e ansiedade, preguiça e
torpor, dúvida - são aquilo que nos impedem de ver com clareza. Basicamente, o
desejo sensual e a má vontade são os dois principais obstáculos. Eles só são
superados naqueles estados meditativos profundos chamados jhanas. Os místicos, as pessoas
que meditam e penetram estados profundos da mente, superam todos os seus condicionamentos temporariamente. Eles
abrem mão de tudo que foram ensinados, tudo que eles alguma vez pensaram, tudo
que possa ser verdade ou não, e aí, eles podem ver a realidade independente da
condicionalidade. Aquilo que eles vêm não é o que eles esperam encontrar. Todos
os insights profundos e a sabedoria iluminadora irão sempre causar um choque
profundo, e eu realmente quero dizer um choque profundo. O que você não espera,
aquilo que você não consegue imaginar é que é a verdade.
É por essa razão que toda
intelectualização imaginável e cogitação não podem nunca chegar na verdade.
Todo movimento da mente não chega ao objetivo. Só quando a mente estiver em
silêncio, em profunda quietude, você poderá entender a verdade. Você
compreenderá, particularmente, a natureza da mente, a natureza da felicidade, e
só então você será capaz de ter um lampejo daquilo que no Budismo chamamos de
"incondicionado." Somente quando se abre mão de tudo - tudo que foi
aprendido, tudo que se esperava, tudo que foi descoberto ou que não se quer
descobrir – é que a verdade é vista. Esse é o caminho para a iluminação. Essa é
a razão porque todos os seres iluminados que conheci na minha vida, pessoas
como Ajaan Chah, eram totalmente imprevisíveis. O condicionamento simplesmente
não estava mais presente. Por essa razão, mesmo observando essas pessoas
durante muitos anos, elas ainda assim nos surpreendem. Esse foi sempre o
indicador de uma pessoa muito sábia. Ao invés de sempre agir com base no
condicionamento elas são inovadoras incríveis, fazendo as coisas de um modo
inesperado. Essa era uma das coisas surpreendentes em Ajaan Chah ; você sempre
tinha que estar de sobreaviso porque nunca poderia imaginar o que ele iria
fazer. Ele sempre causava um choque, num instante rasgando-o em pedaços por
fazer algo que você pensou ser irrelevante e em seguida oferecendo-lhe uma
xícara de chá ou mandando uma xícara de chá especialmente para você. Com esse
grau de "estar além das condições," não se sabia o que ele faria ou
porque. Isso é o que queremos dizer com superar as condições.
Portanto, a moral da história é que, o
quer que seja que você pense ser a verdade, você está enganado. Aquilo que você
pensa ser correto não captou o essencial. Você pensa que tem controle dessas
coisas, mas não tem. Mas você nunca será capaz de aceitar isso. É horrível
demais. Veja por exemplo nibbana.
As pessoas possuem idéias estranhas com relação a nibbana. Mas essas idéias na
verdade não são nibbana,
elas são apenas aquilo que as pessoas querem que nibbana seja. O que você quer que nibbana seja? É isso que você acreditará que nibbana é. Por essa razão, algumas vezes
ensino aos monges que nibbana é a completa cessação, tanto assim que
os monges chamam isso o buraco negro de Ajaan Brahm. Tudo é "chupado para
dentro" e não sobra nada.
Os monges perguntam, "Porque você
faz isso? É esse o objetivo, o objetivo disso tudo é alcançar o completo
suicídio espiritual, mental e físico, com tudo cessando?" As pessoas
querem desfrutar denibbana quando
este ocorrer. A cessação é muito difícil de ser compreendida e aceita pelas
pessoas. Mas eu digo que essa é a verdade. Como você interpreta isso? Você vai
ter que descobrir por si mesmo! O Buda disse que os Budas só indicam o caminho.
Eles indicam o caminho mas é cada um de nós que tem de caminhar por si mesmo.
Se você quiser descobrir o quanto você
é condicionado, o quanto você foi completamente submetido à lavagem cerebral,
então desenvolva meditações profundas e tenha a coragem de ficar chocado. Tenha
a coragem de abrir mão de tudo incluindo o seu ego e o eu. Tenha esse grau de
força pois somente os fortes alcançam a Iluminação. Não estou falando de força
no corpo; estou falando sobre os corajosos dispostos a abrir mão de tudo em
nome da verdade. Assim é como o condicionamento e a lavagem cerebral são
superados, e finalmente a liberdade é conquistada. As pessoas neste mundo
pensam que a liberdade é ser capaz de fazer o que elas quiserem, mas a cobiça,
a raiva e a delusão as estão controlando. Elas não estão livres. Se vocês
realmente quiserem a liberdade, superem esses condicionantes e vejam a
realidade. Ela os surpreenderá, mas a verdade da Iluminação é muito agradável.
Se não
houvesse apego, haveria condicionamento?
Quando
temos consciência de estarmos condicionados? Estamos algumas vez conscientes
disso? Você percebe que está condicionado, ou só percebe a existência de
conflito e luta, em vários níveis da sua existência? Não temos consciência de
nosso condicionamento, certamente, mas apenas de que há conflito, dor, prazer.
“O
que você entende por conflito?”
Qualquer
espécie de conflito: conflito entre as nações, entre vários grupos sociais,
entre indivíduos, e o conflito existente dentro de nós mesmos. Não é inevitável
o conflito, enquanto não se der a integração do agente e da ação, do desafio e
da reação? O conflito é nosso problema, não acha? Não um determinado conflito,
mas todo e qualquer conflito: a luta entre as ideias, entre as crenças, as
ideologias, os opostos. Se não houvesse conflito não haveria problemas.
“Você
está sugerindo que devemos buscar uma vida de isolamento, de contemplação?”
A
contemplação é penosa; é uma das coisas mais difíceis de se compreender. O
isolamento, que, consciente ou inconscientemente, cada um de nós está buscando,
à sua maneira, não resolve os nossos problemas;pelo contrário, aumenta-os.
Estamos tentando compreender quais são os fatores de condicionamento que criam
novos conflitos. Só estamos conscientes de conflito, dor ou prazer, mas não
estamos conscientes de nosso condicionamento. Qual é a causa do condicionamento?
“As
influências sociais e ambientes: a sociedade em que nascemos, o meio cultural
em que crescemos, as exigências econômicas e politicas, etc.”
Exatamente;
mas é só isso? estas influências são produtos de nós mesmos, não são? A
sociedade é o resultado das relações de um homem com outro homem, o que é
bastante evidente. Essas relações são de utilização, de necessidade, de
conforto, de satisfação, e criam influências, valores, que nos prendem. Esse
aprisionamento é nosso condicionamento. Estamos agrilhoados por nossos próprios
pensamentos e ações; mas não estamos conscientes desses grilhões, e só
percebemos o conflito, o prazer, a dor. Parece que nunca passamos daí, e, se o
fazemos, passamos apenas a um novo conflito. Não estamos conscientes de nosso
condicionamento, e enquanto não o estivermos, só poderemos produzir mais
conflito e confusão.
“Como
podemos estar conscientes de nossos condicionamentos?”
Só
pela compreensão de um outro processo, o processo do apego. Se pudermos
compreender a razão por que somos apegados, talvez então possamos perceber o
nosso condicionamento.
“Isso
não é dar uma volta muito grande, para atender uma questão direta?”
Você
acha que é? tente ficar consciente de seu condicionamento. Não pode conhece-lo
senão indiretamente, em relação alguma coisa. Não pode estar consciente de seu
condicionamento como abstração, porque, nesse caso, trata-se apenas de um
conhecimento verbal, sem muita significação. Nós só conhecemos o conflito. O
conflito existe quando não há integração entre desafio e reação. Esse conflito
é o resultado de nosso condicionamento. Condicionamento é apego: apego ao
emprego, à tradição, à propriedade, a pessoas, ideias, etc. Se não houvesse
apego, haveria condicionamento? Decerto que não. Portanto, por que é que
temos apego? Tenho apego ao meus país porque, pela identificação com ele, eu
sou alguém. Identifico-me com o meu trabalho, e o trabalho se torna importante.
Eu sou minha família, minha propriedade; estou apegado a eles. O objeto de meu
apego oferece-me o meio de fuga de meu próprio vazio. O apego é fuga, e a fuga
é que robustece o condicionamento. Se tenho apego a você, é porque você se
tornou meu meio de fuga de mim mesmo; por isso, você é muito importante para
mim, e tenho de lhe possuir, manter-me preso a você. Você se torna o fator de
meu condicionamento, e a fuga é o condicionamento. Se nos tornarmos conscientes
de nossas fugas, perceberemos então os fatores, as influências que produzem
condicionamento.
“Estou
fugindo de mim mesmo com meu trabalho social?”
Você
está a ele, está preso a ele? Você se sentiria aniquilado, vazio, entediado, se
não fosse ele?
“Estou
certo de que assim me sentiria.”
Seu
apego a esse trabalho é a sua fuga. Há fugas em todos os níveis da nossa
existência. Você se refugia no trabalho, outro na bebida, outro nas cerimônias
religiosas, outro no saber, outro em Deus, e outros, ainda, em vários
divertimentos. Todas as fugas são iguais; não há fuga superior ou inferior.
Deus e a bebida se acham no mesmo nível, quando representam meios de fuga
àquilo que somos. Quando temos consciência de nossas fugas, só então podemos
conhecer o nosso condicionamento.
“Que
devo fazer, se deixar de fugir por meio da assistência social? Posso fazer
alguma coisa sem estar fugindo? Toda e qualquer ação de minha parte não
representa uma forma de fuga ao que sou?”
Esta
pergunta é meramente verbal, ou reflete uma realidade, um fato que você está
experimentando? Se você não fugisse, que aconteceria? Já experimentou isso?
“O
que você diz é tão negativo, se posso assim me expressar. Você não oferece
substituto algum para o meu trabalho.”
Toda
substituição não constitui uma outra forma de fuga? Quando uma certa atividade
não é satisfatória ou cria mais conflito, corremos para outra. Substituir uma
atividade por outra, sem compreensão da fuga, é um tanto fútil, não acha? São
essas fugas e nosso apego a elas, que produzem condicionamento. O
condicionamento cria problemas, conflitos. É o condicionamento que nos impede a
compreensão do desafio; visto que estamos condicionados, a nossa reação tem de
criar, inevitavelmente conflito.
“Como
se pode ficar livre de condicionamento?”
Só
pela compreensão, pelo percebimento de nossas fugas. Nosso apego a uma pessoa,
um trabalho, uma ideologia, é o fator condicionador; temos de compreende-lo, em
vez de buscarmos uma fuga melhor ou mais inteligente. Todas as fugas são
ininteligentes, já que inevitavelmente produzem conflito. O cultivo do desapego
constitui uma outra maneira de fuga, de isolamento; é apego a uma abstração, a
um ideal. O ideal é coisa fictícia, produto do “eu”, e tornar-se o ideal representa uma fuga ao que é.
Só há compreensão de o que é e ação adequada em relação ao que é,
quando a mente já não está a buscar refúgios. O próprio pensar a respeito do
que é, é fuga ao que é.
Pensar no problema é fugir do problema; porque o
pensamento é o problema, o único problema. A mente que não
deseja ser o que é, que teme o que é, busca esses vários modos de fuga; e a via
de fuga é o pensamento. Enquanto houver pensamento, haverá necessariamente
fugas, apegos, que só podem fortalecer o condicionamento. Libertamo-nos do
condicionamento quando nos libertamos do pensar. Quando a mente está tranquila
de todo, só então há liberdade, para a existência do Real.
Krishnamurti
– Reflexões sobre a vida